Artigo

Ainda o ensino a distância

A proliferação desordenada e, como disse muitas vezes, de baixa qualidade só fez trazer uma imagem negativa para o EaD e para aquelas instituições que procuraram zelar pela qualidade

"A nova portaria aplica uma solução padronizada para um problema complexo e heterogêneo, em vez de fortalecer mecanismos de avaliação, transparência e responsabilização por resultados" - (crédito: Maurenilson Freire)

MOZART NEVES RAMOS, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados da USP de Ribeirão Preto

Nas últimas semanas, o decreto do marco regulatório do ensino a distância (EaD) foi certamente o tema mais debatido da área da educação. Apesar disso, ainda pairam a esse respeito muitas incertezas, ao menos para mim. Com isso, por outro lado, não quero dizer que o Ministério da Educação não tenha tomado a decisão correta — e mais, que o tenha feito com certo atraso. Era preciso dar, como costumamos dizer, um freio de arrumação na oferta dessa modalidade, cujo crescimento foi exponencial nesses últimos 10 anos, mas totalmente desordenado — muitas vezes sem tomar o devido cuidado com a qualidade dessa oferta. Os cursos de R$ 99, como ficaram conhecidos, se multiplicaram pelo Brasil afora, afetando a imagem de uma modalidade que reputo de grande importância para a democratização da oferta do ensino superior em nosso país — que ainda tem o desafio de chegar a 33% de matrículas nesse nível de ensino para jovens na faixa etária de 18 a 24 anos, como apregoa o Plano Nacional de Educação (PNE). Até aqui só alcançamos 21% — objetivo muito distante da meta estipulada.

A proliferação desordenada e, como disse muitas vezes, de baixa qualidade só fez trazer uma imagem negativa para o EaD e para aquelas instituições que procuraram zelar pela qualidade, seja na infraestrutura dos polos, seja na relação do número de alunos por tutores, seja na própria qualidade das aulas. Terminamos por criar uma situação de copo d'água meio cheio.

Vamos agora olhar para quem mais precisa do EaD para tornar o sonho do diploma de nível superior uma realidade — e as pesquisas mostram que são aquelas pessoas de idade média acima da faixa dos 18 a 24 anos, que trabalham e precisam ter flexibilidade de horário para fazer um curso superior, e que, além de tudo em geral, constituíram família e vêm de origem humilde — a grande maioria das quais egressas de escolas públicas. Outro aspecto dessas pessoas é que, em geral, vivem em municípios de pequeno porte que não têm, na maioria das vezes, uma instituição de ensino superior — e, assim sendo, encontravam no EaD a única possibilidade de ter um diploma de nível superior. Também aqui não estamos defendendo a ideia de que basta dar qualquer diploma a essas pessoas, mas uma coisa é certa: precisamos lhes dar oportunidades justas, para que elas também possam ter direito ao diploma, evitando dessa forma que ampliem ainda mais o fluxo migratório das pequenas para as grandes cidades.

Agora, vamos tratar dos cinco cursos que a partir desse decreto deverão ser oferecidos exclusivamente no modelo presencial, sem atividades mediadas pelas novas tecnologias. Como foi amplamente divulgado, estamos aqui falando de direito, medicina, enfermagem, psicologia e odontologia. Vamos começar pelo curso de direito: não tenho dúvidas do valor do curso presencial para uma boa formação — se tivermos professores comprometidos e boas condições de trabalho docente, o que, algumas vezes, não se verifica. Assim, não é necessariamente o curso presencial que vai garantir a qualidade. Mas não entendo como deixar de fora atividades curriculares que poderiam ser naturalmente mediadas pelas novas tecnologias — notadamente quando, hoje, profissionais egressos desses cursos, especialmente nos diversos órgãos públicos, fazem uso da tecnologia para a realização de audiências. Por que, então, parte do conteúdo teórico desses cursos não poderia ser oferecida mediante o uso dessas tecnologias, especialmente agora, que a Inteligência Artificial trará grandes mudanças às diversas áreas do conhecimento? Sinceramente, não consigo encontrar a resposta para essa questão crucial. 

Vamos, agora, aos quatro cursos da área da saúde, aos quais nos parece mais óbvia a oferta 100% presencial. Hoje, temos o uso cada vez mais frequente da telemedicina, sem falar que muitas consultas estão sendo feitas no modelo on-line. Ou estou equivocado? Sem dúvida, não podemos abrir mão das aulas práticas supervisionadas e de aulas teóricas que, pela eventual especificidade do conteúdo, requerem o modelo presencial. Mas por que proibir aulas mediadas pelo uso das tecnologias quando isso for possível no contexto curricular?

Talvez pairem tais dúvidas sobre essas questões porque o MEC não tenha feito uso de bases empíricas para essas definições. Por exemplo, os cursos de fisioterapia e de farmácia ficaram no chamado modelo semipresencial, permitindo, assim, a inclusão neles de algumas atividades on-line. Quem conhece alguma coisa da estrutura curricular desses cursos bem sabe que eles requerem muito mais atividades práticas do que o curso de direito. Mas por que então este último ficou na modalidade 100% presencial? Difícil, pelo menos para mim, justificar isso.

Aqui, termino concordando com o educador João Batista Oliveira, que, em seu artigo Regulamentação do Ensino a Distância: muito barulho por nada — ou quase, entre outras coisas, afirma que a nova portaria aplica uma solução padronizada para um problema complexo e heterogêneo, em vez de fortalecer mecanismos de avaliação, transparência e responsabilização por resultados. 

postado em 12/06/2025 06:03
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